Poder em perspectiva nas terras do sem fim, por Elisabeth Zorgetz

Elisabeth Zorgetz
Clodoaldo Ribeiro Arquivo

 

Vivíamos num mal estar público. Avançamos, temporalmente, para uma crise. Hoje vivemos uma guerrilha. Ora silenciosa e rasteira, como cabe bem a essa democracia, mas também perene de sangue e som. Costumamos destacar os conflitos pontuais, transformando-os numa dramática perturbação do andamento de nossas vidas. Buararema fala por si. Imediatamente se borram dos recursos da memória os dois milhões de indígenas exterminados pelo contato com a propriedade privada. Os assíduos assassinatos de pequenos agricultores pelo contato com a propriedade privada. Demarcação não é um brinquedo de montar. Os grandes senhores sempre ofereceram subsídios para que o povo matasse um ao outro, colericamente.

É constrangedor falar sobre a memória em Ilhéus. Ontem, durante uma sessão na Câmara Legislativa da cidade, sofri das angústias de um povo que é refém do processo eleitoral. Há um vazio de consistência no nosso modelo democrático que permite o encarceramento da razão popular. É desesperadora a necessidade de falar, gritar, aclamar e repudiar diante de tanta humilhação como a que presencio a todo o momento naquela casa. E quando não sobra nenhum ultraje entre os dentes dos eleitos, o condutor do festim reinicia a jornada do bom trabalho da casa, que opera entre intermináveis entregas de títulos de cidadão ilheense ou num opulento desfile de vaidades. O povo ainda estará lá, contendo-se impossivelmente, clamando que o tempo seja piedoso com suas causas e permita-lhe alguns minutos de atenção entre os vereadores. Quando se aproxima, finalmente, o fugaz contato com os instituídos poderes, o presidente da casa encerra a sessão pela postura indecorosa do povo que urra, aplaude, vaia e sussurra. O curioso é que ainda nunca vi, por essas bandas, uma sessão ser encerrada pela quebra de decoro dos eleitos, apesar da troca de palavras de baixo calão e do pisoteamento do estado laico, comportamento tão cotidiano que já se confere em naturalidade. Há homens tão tacanhos no plenário que sangra os olhos de ver. O ilheense precisa aprender a votar? Precisa, em caráter de urgência! Mas o cidadão também tem dever e direito de ressignificar ainda hoje o papel dos seus representantes. O voto não confere imunidade popular e o mandato não salvaguarda ninguém do julgo do povo. Em 1841 foi entronado o último monarca nessa terra, e ele ainda conseguia ser mais humilde que muitos vereadores dessa cidade. Lamentavelmente, no seio de uma família tradicional, os pequenos fazem do comportamento paterno a lei, ignorando, como é comum a sua inabilidade, que esse pai pode ser um crápula da pior espécie. Mas um dia os filhos enfrentam o mundo, e o mundo é povo, é a classe trabalhadora. Então eles sofrem e padecem, agarrados ao mau exemplo de dentro de casa.

Nos dois últimos dias, aconteceu em Itabuna o III Encontro Baiano de Conselhos e Gestores de Políticas Públicas de Juventude, onde diversas cidades se reuniram para debater e projetar as ações entre a juventude e o poder público.  Um momento feliz para a democracia, ainda que com suas incômodas limitações. Penoso mesmo foi perceber o relativo isolamento e opressão que o jovem de Ilhéus sofre em suas tentativas de se comunicar com os poderes. Existe essa barreira invisível, erguida em intransigência, autoritarismo e corrupção, que afasta o jovem da ação política, pois sabe que é esse jovem que tem capacidade de dissolver as farsas do regime diante da sociedade. Nada o acorrenta: nem o medo, conservadorismo ou as instituições sociais.  Nem mesmo sua força de trabalho, pois esse jovem já é convicto de que é possuidor da máquina que move o mundo. Um “Pacto Pela Juventude”, criado pelo Conselho Nacional da Juventude, foi assinado pelo atual prefeito, em campanha. Um compromisso foi selado com o jovem ilheense. Palavra, caneta, trajetória desse senhor, no entanto, não merecem a mínima confiança.

Somos tão condicionados a nos isentar das responsabilidades políticas que quando se fala em transferência de poder já se pensa num novo pleito, ninguém menciona o empoderamento coletivo. Do mesmo modo, citam Rousseau tão tolamente que nunca completam sua máxima na íntegra. O poder emana do povo. E para o povo. Jamais esqueçamos.

 

A autora Elisabeth Zorgetz é ilheense, membro do Coletivo Reúne Ilhéus, escritora e graduanda em História na UFRGS. É membro do Núcleo de História da Dependência Econômica na América Latina e trabalha a prospecção de estratégias focais de reforma agrária no sul da Bahia.